domingo, 26 de abril de 2015

Diferenças


Amanda acorda todos os dias pouco antes do despertador tocar, às 5 horas, e por mais que queira dormir mais um pouco, sabe que preguiça não tem hora marcada em sua agenda lotada de responsabilidades e compromissos. Ela começa seu dia com uma corrida pelas ruas do bairro antes mesmo do sol acordar para, segundo ela, “acordar e preparar o organismo para enfrentar o estresse do dia-a-dia”. Seu cachorro Brownie lhe faz companhia pelas vias adormecidas e escuras. Ao retornar, cronometradamente uma hora depois, toma um banho demorado e revigorante e enquanto se arruma para sair novamente é a única hora do dia que tem tempo para ver TV durante a semana. Na verdade, “ver a TV” é o que ela menos faz; ela “ouve” o noticiário da manhã. Depois sai para enfrentar sua longa jornada diária.

Enquanto isso, do outro lado da cidade, Taylor chega em casa aos tropeços de tão bêbado após mais uma noite de curtição com seus amigos. Dessa vez foi à festa de inauguração de mais um estabelecimento pertencente ao grupo de entretenimento do qual é sócio majoritário, uma boate que promete ser a mais moderna e requintada casa noturna da cidade. Ele é praticamente carregado por sua bela e alterada acompanhante ajudada por seu melhor amigo, que está num estado um pouco melhor do que o dos outros dois. “A festa pode ter acabado, mas a noite ainda não!” ele exclama, erguendo um champanhe e botando o som no máximo dando continuidade a festa em seu próprio apartamento, sem se importar se o barulho irá incomodar os vizinhos ou não. Sua bateria só acaba quando a noite já virou dia. Seus olhos azuis só se fecham quando a lua já trocou de turno do com o sol.

A jornada diária de Amanda até a loja onde trabalha como gerente de setor é longo. A loja fica num dos bairros da região central da cidade, cerca de uma hora e meia de distância do bairro de classe média baixa onde ela mora e por depender do transporte público, o tempo de deslocamento até lá chega a aumentar quase uma hora nos horários de pico. Então para evitar isso, ela prefere sair bem mais cedo do que a maioria dos seus vizinhos que fazem trajetos semelhantes saem. A primeira etapa do caminho é feita no único ônibus do bairro que a leva até a estação de metrô mais próxima, para de lá ela pegar o trem e continuar seu percurso até o trabalho. Ela gosta de sentar nas cadeiras mais altas do ônibus para “ver a cidade de cima” e sempre chega no metrô com minutos de crédito para comprar um cafezinho pra viagem e um jornal na revistaria onde é “freguesa vip”. O percurso final, feito de metrô, ela faz lendo as matérias de maior destaque do jornal enquanto bebe seu café distraidamente, ignorando totalmente os cadernos de “Entretenimento”, “Programação da TV” e “Coluna Social”.

Taylor acorda com seu celular tocando insistentemente. A vontade que tem é de arremessá-lo na parede, mas ao ver sua foto ao lado de uma loira estonteante aparecer na tela ele resolve atender. Era a gata que descolara na noite anterior cujo nome não lhe vinha a cabeça, lhe perguntando se havia esquecido o sutiã em sua casa. Ele dá uma olhada rápida em volta e se surpreende com duas mulheres seminuas totalmente desconhecidas dormindo a seu lado. “É... A noite rendeu!” ele se gaba, achando o sutiã da loira num canto do quarto, tal como outras peças de roupas e acessórios espalhados pelo cômodo. Agora que já acordou, resolve começar seu dia com um mergulho na piscina de sua luxuosa cobertura de frente pro Central Park, para “acordar e ter a dose diária de exercício físico”, como costuma dizer, acordando as duas garotas despidas em sua cama com o barulho da água. Elas se juntam a ele no mergulho, todos “do jeito como vieram ao mundo”, depois tomam um banho demorado e quente na hidromassagem de sua suíte. Ao saírem do quarto todos devidamente vestidos, ele em sua roupa de grife, elas nos trajes vulgares que foram para a boate na noite anterior, dão de cara com um verdadeiro banquete preparado pela empregada de Taylor, que o conhece desde bebê e cuida dele como se ele fosse seu próprio filho, depois saem da casa, Taylor as deixando na estação de metrô próxima e seguindo para o trabalho.

Apesar de ser a funcionária que mora mais longe, Amanda é a única que consegue chegar no trabalho todos os dias com tanta antecedência que consegue preparar o café da manhã para o resto da equipe, que muitas vezes vai trabalhar de estômago vazio, além de arrumar seu setor antes mesmo dos encarregados de serviços gerais chegarem. Sua pontualidade e assiduidade sempre lhe rendem elogios vindos tanto dos colegas de setor quanto dos outros departamentos e até de seus superiores. Ganhar destaque como “Funcionário do Mês” já é tão comum que o Gerente nem se dá mais ao trabalho de tirar sua foto da parede ao fundo do Caixa da loja. Quando a loja abre, às 8 horas em ponto, lá está ela imponente em seu posto na sessão de Perfumaria e Cosméticos, sempre bem maquiada e penteada e com seu sorriso simpático sempre estampado no rosto.

Além de ser sócio majoritário de uma das empresas de maior destaque no ramo do entretenimento e realização de eventos da cidade, Taylor é pupilo de seu pai na administração dos negócios da família, uma vez que um dia herdará sozinho todos os bens adquiridos desde a época de seu avô. Sua conta bancária já tem tantos zeros que se ele quiser parar de trabalhar agora, aos 27 anos e não trabalhar nunca mais na vida ele pode muito bem fazê-lo, o que o faz se sentir no direito de aparecer em seu escritório a hora que quiser, isso quando resolve aparecer. A verdade é que ele trabalha mais por hobby do que por necessidade, o que ele gosta mesmo é dos prestígios que seu nome e suas posses lhe dão, ele gosta é de se deleitar nos eventos aos quais é convidado e sentir seu ego inflar ao ver seu rosto estampado nas colunas sociais.

Passar 8 horas se equilibrando sobre um salto e mantendo o sorriso constantemente estampado no rosto não é para qualquer um, mas Amanda tira de letra. Ao fim da jornada de trabalho tudo o que ela mais quer é ir pra casa, mas não é isso que faz: ela sai do trabalho e vai direto para a faculdade, não muito longe dali. Conciliar trabalho e estudo, é algo que para muitos é impossível, mas para ela teve que se tornar possível por questão de necessidade, desde os seus 14 anos, quando resolveu ganhar o próprio dinheiro para desafogar seus pais da obrigação de cuidar de mais um filho além dos seus quatro irmãos mais novos. Seus pais nunca a obrigaram a isso, muito menos cobraram qualquer contribuição monetária dentro de casa apesar das dificuldades que a “do lar” e o “faz tudo” enfrentavam para criar os filhos, porém Amanda sempre se sentiu na obrigação de ajudar seus pais e irmãos. E foi com esse intuito que deixou eles e seus amigos na pequena Little Falls e veio para New York City realizar seu sonho de se tornar uma grande jornalista e poder dar a sua família melhores condições.

Depois de um dia de trabalho, Taylor sempre tem um plano pra relaxar e curar o estresse do dia, mesmo quando a coisa que menos fez durante o dia foi trabalhar e se estressar. Seja num bar ou numa festa, ele pode até chegar sozinho, mas jamais passa o resto da noite desacompanhado. Convites pra sair não lhe faltam e muito menos lhe falta vontade de recusá-los, portanto sua agenda está sempre cheia, de segunda a segunda, muitas vezes com mais de um lugar com sua presença confirmada, lhe obrigando a comparecer em mais de um evento social na mesma noite. Para Taylor, estar sempre cercado de gente, conhecida ou não, é muito mais relaxante do que uma sessão com sua massagista; a badalação recarrega sua energia mais do que uma noite de sono; a agitação noturna faz seu sangue fluir, faz seu coração bater, faz ele se sentir vivo.

“Diversão” é uma palavra quase desconhecida por Amanda. Não que ela não se divirta as vezes, mas é que é tão difícil arranjar um tempinho na sua agenda apertada e corrida, que ela simplesmente aprendeu a substituir essa palavra por outras como “estudar”, “ler”, “pesquisar” e “escrever”. Seus amigos do trabalho e da faculdade vivem insistindo para ela sair com eles pra tomar uma cervejinha ou dançar um pouco, mas esses convites não a atraem muito. No entanto, é a primeira na fila da pipoca quando recebe convites pro cinema ou pro teatro, suas duas paixões. Exposições de artes, feiras de artesanatos e antiguidades, livrarias e cafeterias também são ótimos pretextos para tirá-la de casa.

Como todo playboyzinho que se preze, Taylor gosta de se vestir bem e causar boa impressão. Está sempre bem vestido e cheiroso, atraindo olhares e arrancando suspiros de todas as mulheres pelas quais passa. Está sempre ligado nos novos lançamentos das maiores boutiques masculinas da cidade e sempre que uma nova abre, faz questão de ir conhecê-la e se tornar cliente fidelidade, não pelo desconto, pois não precisa disso, mas sim pela exclusividade em ver e poder comprar as peças das novas coleções. Como dinheiro não lhe é problema, fazer compras altas com freqüência é algo corriqueiro para Taylor.

Apesar de já morar numa grande cidade há alguns anos e trabalhar numa das maiores boutiques do país – se não do mundo! – Amanda ainda tem aquele mesmo ar interiorano e comum que tinha em Little Falls. Isso não quer dizer que ela seja descuidada ou não saiba se vestir bem, muito pelo contrário, está sempre impecavelmente bem vestida e maquiada, porém suas peças não são assinadas por estilistas famosos, tampouco são da última coleção. Gastar dinheiro com roupa é algo que Amanda só faz uma vez por ano e olhe lá, mesmo assim a única boutique em que entrou na vida foi na Ralph Lauren onde trabalha.

Mesmo sendo pessoas de culturas e hábitos tão diferentes, os caminhos de Taylor e Amanda um dia se cruzaram e o que parecia impossível de acontecer entre eles aconteceu: o riquinho badalador e mulherengo e a trabalhadora responsável e caseira se apaixonaram e entraram de cabeça nesse relacionamento inesperado e contraditório. O início foi turbulento pros dois, foi difícil conciliar tantas diferenças tão abismais, mas o mesmo destino que os aproximou fez todo o trabalho de os manter juntos.

Ela passou a sair mais, curtir um pouco mais a vida, a brindar a juventude; ele maneirou na curtição, diminuiu as bebedeiras e as baladas, aprendeu que também é possível se divertir dentro de casa. Ele passou a levar o trabalho mais a sério, se tornou mais responsável e adulto, nunca mais se atrasou ou saiu mais cedo; ela passou a chegar e sair no horário certo no trabalho, diminuiu a quantidade de horas-extras e descobriu que matar uma aula ou outra não fazia mal algum. Ela continuou fazendo sua corrida matinal e sua dieta rigorosa durante a semana, mas nos finais de semana se dava o direito de comer um Burguer King ou uma pizza bem gordurosa; ele se matriculou na academia, passou a seguir uma dieta feita por um nutricionista e trocou a Coca-Cola grande do café da manhã pelo suco de laranja natural feito na hora. Ele perdeu o contato com todas as outras mulheres que antes não paravam de procurá-lo e descobriu que seus amigos de farra só eram seus amigos mesmo quando ele os colocava dentro de uma balada; ela passou a ser odiada por essas mesmas mulheres e por esses mesmos amigos, porém juntos fizeram novos amigos muito mais interessantes e verdadeiros.

As pessoas que os conheceram antes deles se conhecerem e acompanharam a evolução do relacionamento desde o início, tiveram que admitir que ficaram surpresas quando receberam o convite do casamento, pois ninguém esperava que o namoro entre dois opostos daria tão certo. Se surpreenderam mais ainda um ano depois, com a notícia de que Taylor vendera sua parte na empresa de entretenimento para comprar e reformar o antigo jornal de Little Falls e dá-lo de presente de formatura para Amanda, no mesmo período em que comemoraram o aniversário de um ano de casamento.

Amanda, que não pretendia voltar a morar no interior, cedeu ao pedido dengoso do amado quando este pediu para que seus filhos fossem criados num lugar afastado da bagunça de New York City. Taylor, por sua vez, aceitou a condição da amada de voltar a morar em Little Falls desde que só tivessem no máximo três filhos ao invés dos sete que ele queria ter.

Hoje Amanda e Taylor vivem felizes em Little Falls, onde moram numa casa confortável e com um amplo jardim do jeito como Taylor sempre desejou ter quando criança, mas não teve porque sempre morou em apartamento. Seus três filhos, apesar de serem criados com regalias que Amanda não teve, aprenderam que nada na vida vem de “mão beijada” e que pra conseguirem o que querem eles têm que merecer e batalhar por isso, exatamente como seus avós maternos ensinaram a sua mãe desde novinha e seus avós paternos tentaram ensinar a seu pai por anos, sem sucesso.

Amanda e Taylor são a prova viva de que mesmo quando parece que o Cupido errou o alvo, na verdade ele o acertou em cheio, mas como gosta de travessuras, gosta de nos fazer de bobos um pouco; são a prova viva de que os opostos se atraem, de que mesmo onde parece só haver diferença, é possível encontrar semelhanças, basta a gente dar uma chance a emoção ao invés de só dar ouvidos a razão.

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