segunda-feira, 20 de abril de 2015

Prisioneira de Mim Mesma


No início eram só alguns movimentos quase imperceptíveis: uma piscada dessincronizada, uma franzida de testa, uma repuxada de lábio que eu sequer notava que estava fazendo. Vez ou outra eu era perguntada "por que tá fazendo essa cara?" e minha resposta era outra pergunta "Que cara?" aí descreviam o que eu supostamente havia feito com os olhos ou com os lábios, mas como eu sabia que não havia feito nada disso, eu só achava que "Fulano endoidou.." e deixava pra lá. A medida que situações como essas se tornaram mais frequentes então começarem a acreditar e a falar que eu havia desenvolvido tiques nervosos.

De repente esses tiques nervosos não se limitavam mais a curtas alterações de expressões faciais, passaram a ocorrer por todo o meu corpo com cada vez mais frequência e a intensidade aumentou tanto que até eu me incomodava comigo mesma. Eu tentava pará-los mantendo minhas pernas bem cruzadas e minhas mãos entrelaçadas e isso até funcionou por um curto período de tempo, mas logo percebi que realizar tarefas tão banais quanto comer e falar se tornaram difíceis.

Meu andar também se alterou. Eu tropecei, cai e me machuquei por tantas vezes, em casa ou na rua, que acharam melhor me tirarem meus tão amados sapatos de salto. Certa vez um vizinho muito gentil me parou na rua enquanto eu voltava da padaria e me ofereceu para segurar meu braço para auxiliar na caminhada... No dia seguinte soube que esse mesmo vizinho gentil havia espalhado para todos do prédio que eu estava tão bêbada que não conseguia andar sozinha! Daquele dia em diante achei melhor não sair mais de casa sozinha, muito menos se tivesse que caminhar, porque sentia que minhas pernas não me obedeciam mais. Eu estava perdendo o controle de mim mesma.

Cada limitação nova que aparecia me tirava um pouco da vontade de viver, eu me fazia sentir por diversas vezes vontade de me trancar no quarto e ficar encima da cama esperando a morte vir me buscar. As pessoas vinham falar comigo sobre ter esperança e fé, mas a única coisa que eu me perguntava era "Queria ver se elas estariam falando isso se estivessem no meu lugar". O pior é que nem fazer essa pergunta a eles eu podia porque ninguém me entendia com clareza mais, então, para evitar a frustração de me repetir mil e uma vezes e não me fazer entender, aos poucos fui falando cada vez menos, até que uma hora minha voz parou de sair.

As vezes eu penso que talvez se eu tivesse continuado a falar, mesmo sem ser entendida, talvez hoje eu conseguisse emitir algum som, pelo menos pra demonstrar minha insatisfação quando passam o perfume que não quero passar ou mostrar o quanto fico feliz quando como uma picanha bem passada. Mas infelizmente não posso mais manifestar minhas emoções através da fala... A não ser sono que sempre me faz emitir bocejos tão altos que surpreendem a todos, até a mim mesma.

Sabe o que é o mais triste de tudo isso? É ver como as pessoas tem uma visão distorcida da situação. Elas acham que o fato de eu não falar, nem manifestar mais minhas emoções como antigamente quer dizer que eu não sinta nada, mas estão absurdamente equivocadas! Eu sinto absolutamente TUDO! E se você prestar bem atenção, verá que estou demonstrando meus sentimentos muito sutilmente, só não faço isso com a mesma agilidade de antes. Ou você acredita mesmo que eu gosto do sabor horrível dos remédios que tenho que tomar? Claro que não! Embora eu não demonstre, me sinto muito aliviada quando sinto o gosto maravilhoso do suco que me dão logo em seguida para tirar o gosto ruim.

Também me sinto muito feliz quando recebo visitas, mesmo das pessoas que gritam como se eu fosse surda ou falam em câmera lenta como se eu fosse retardada. Eu sei que não fazem por mal, fazem por puro desconhecimento da doença, mas confesso que isso me irrita bastante, tanto quanto quase grudar a cara na minha por achar que sou cega! Não, pessoal, não sou surda, nem cega, nem retardada, eu só não falo, mas ouço, vejo, entendo, sinto e penso.

Ao mesmo tempo que é um saco ter todo mundo fazendo tudo por mim, muitas vezes inclusive fazendo coisas que eu não quero ou não gosto, é bem cômodo não ter mais que enfrentar o estresse do transito, nem a fila do supermercado. Os olhares que a cadeira de rodas geralmente atraem ainda me incomodam muito também, mas dou graças a Deus por ela todos os dias quando sinto a brisa do mar tocar meu rosto. Também acho bem frustrante quando as pessoas não conseguem entender o que eu quero (ou não quero), mas o esforço delas em me agradar é tanto que só me faz pensar em uma coisa: o quanto é grande o amor delas por mim!

Em resumo, não sou mais a mesma fisicamente falando, mas sou a mesma mentalmente. É como se eu estivesse presa dentro do meu corpo. Meus olhos veem, meus ouvidos ouvem, minha mente pensa, mas meu corpo só reage quando e como quer; ele e minha mente estão divorciados, por assim dizer. As vezes sinto como Rapunzel: meu corpo é a torre onde estou presa, minha doença é a bruxa que me prendeu, meus remédios, assim como a trança, me trazem pro mundo real e as pessoas que me amam são o príncipe que vai me resgatar.


2 comentários:

  1. As pessoas realmente são bastante más. Se preocupam mais em espalhar mentiras do que ajudar e ser caridoso. As pessoas com deficiências têm limitações sim, mas a vida ainda floresce dentro delas a cada novo dia. Lindo texto, Jubys!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Só Deus sabe o quanto já vi minha mãe chorar - e chorei junto -por causa de olhares e comentários inconvenientes, alguns vindos até de pessoas próximas da gente...

      Excluir